Malú Mestrinho

Apresentação

Olá!
Este é meu blog pessoal.

Aqui pretendo comentar sobre coisas que vi, ouvi e vivi.
Gosto de escrever e às vezes sinto um impulso de compartilhar... Como não sei exatamento com quem, resolvi criar este espaço e deixar que pessoas acessem e leiam quando quiserem.
Pretendo também escrever e trocar idéias sobre a arte do canto. Mais especificamente do canto que interpreta a música chamada erudita.

Malú Mestrinho
(em julho/2010)


domingo, 6 de março de 2016

Harnoncourt, o Barroco, e eu


  
A morte de Nikolaus Harnoncourt hoje, 06 de março de 2016, me fez pensar e lembrar de coisas interessantes. Constatei que este maestro austríaco teve grande influência na minha maneira de fazer e pensar a música. Por ter sido um grande artista, seu trabalho foi divulgado e publicado até chegar a mim, uma estudante universitária de música dos anos 80, no Brasil. As idéias de Harnoncourt e sua maneira de interpretar a música histórica foram e são fundamentais no meu trabalho. Já mencionei isso para meus alunos, mas achei por bem registrar hoje aqui.
     A primeira vez que vi um trabalho dele foi assistindo uma ópera na casa do meu professor Zuinglio Faustini, acho que era o Orfeo de Monteverdi. Zuinglio tinha comprado um VHS (ou um "laserdisc") da ópera em uma de suas viagens e estava triunfante ao perceber que os cantores usavam sua voz "inteira", com profundidade e vibrato, ao contrário de uma visão (que ele detestava) de que a música barroca tinha que ser cantada com a voz "reta", sem vibrato.
Maestro Gerald Kegelmann
   Em 1985, veio a Brasília o maestro Gerald Kegelmann, amigo de Claudio Santoro, que regia a Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional. Kegelmann preparou e regeu a Missa em Si Menor de J. S. Bach. Eu estava no coro. Lembro que foi em 1985, porque eu estava grávida da minha 1ª filha e ele abriu exceção para que eu me sentasse nas partes que o coro não cantava durante o concerto. A preparação desta Missa foi um verdadeiro curso de interpretação do Barroco para nós que tivemos o privilégio de cantar com ele. Me apaixonei pela Missa, pela tonalidade de Si menor e profundamente por Bach. Os ensaios eram pela manhã na Escola de Música de Brasília. À tarde, durante duas semanas, ele deu um curso de extensão sobre o Oratório de Natal de Bach na UnB. Era voltado para a análise da obra, fraseado e micro articulações do Barroco. No final da aula, ele ouvia e orientava os cantores que quisessem estudar alguma ária do oratório. Estudei a ária Bereite dich Zion e esta parte do curso foi a mais proveitosa pra mim. Kegelmann era um discípulo da "escola" de Harnoncourt na Alemanha. Ele expôs (para mim, pela 1ª vez) a visão da "interpretação historicamente informada". Um mundo novo se abriu com os ensinamentos de Harnoncourt que o dedicado maestro trouxe. 
     A partir daí, passei a ouvir e cantar a música barroca de outra maneira e busquei ouvir as gravações e assistir as óperas de Harnoncourt. Tive uma crise entre a voz redonda com muito legato que Zuinglio Faustini desenvolveu em mim, e a voz leve que as coloraturas das árias barrocas exigiam. Aos poucos consegui equilibrar as duas maneiras de cantar e aprendi a usá-las de acordo com o repertório. 
     Quando trabalhei no Theatro Municipal do Rio, fui solista num Magnificat de Bach, um concerto lindo, com ballet. O maestro Alessandro Sangiorgi, que regeu,  percebeu que eu dividia as articulação das frases e perguntou se eu tinha estudado na Europa. "Não maestro, um europeu veio a Brasília e eu aprendi aqui mesmo".
     Kegelmann voltou a Brasília outras vezes, nos Cursos de Verão da Escola de Música de Brasília. Cantei mais uma vez num coro regido por ele, num destes cursos, e tive o privilégio ser solista da Cantata nº 12 de Bach, "Weinen, Kleigen, Sorgen, Zagen", que ele regeu, em 2001.
     Na especialização que fiz na UnB (2002), "O discurso dos sons" foi mencionado como algo básico a ser lido, foi quando o li e entendi de forma sistematizada o que eu aprendera na prática. Lembro que relia passagens, grifava, anotava. Nesta época, cantei com Luciana Tavares o Stabat Mater de Pergolesi, no Festival de Música de Pirenópolis, regido pelo Alessandro Santoro. Foi numa igreja antiga com teto de madeira, com instrumentos de época, que resultou numa sonoridade muito especial. Foi quando percebi a diferença brutal no fraseado e articulação que estes instrumentos faziam. Depois disso, trabalhei várias vezes com músicos da área da música antiga na Escola de Música de Brasília, cantando música barroca, com instrumentos de época. Um privilégio, que hoje, estando longe de lá, reconheço.
     Na verdade, sei pouco sobre Harnoncourt. Mas falo do que aprendi ouvindo seus concertos, lendo o que ele escreveu e cantando com músicos que também tiveram a influência dele. Hoje, ensinando jovens cantores universitários, percebo a importância desta vivência e aprendizado que tive.
 
     Recomendo o artigo Inversão de valores num mundo materialista, de 2013, sobre as idéias de Harnoncourt no Blog "Falando de Música", do Maestro Osvaldo Colarusso.
      E por último, coloco aqui o maravilhoso Orfeo de Monteverdi na concepção de Harnoncourt, que conseguiu como ninguém equilibrar a leveza do Barroco com a intensidade dramática da ópera. 


     Harnoncourt se foi, mas a música que ele fez nos ficou de herança. Graças a Deus.