Malú Mestrinho

Apresentação

Olá!
Este é meu blog pessoal.

Aqui pretendo comentar sobre coisas que vi, ouvi e vivi.
Gosto de escrever e às vezes sinto um impulso de compartilhar... Como não sei exatamento com quem, resolvi criar este espaço e deixar que pessoas acessem e leiam quando quiserem.
Pretendo também escrever e trocar idéias sobre a arte do canto. Mais especificamente do canto que interpreta a música chamada erudita.

Malú Mestrinho
(em julho/2010)


terça-feira, 27 de março de 2012

O instrumento de Elena


[...Em tempos de impossibilidade de escrever, 
aproveito para postar a história de Elena]
Maria Lucia Godoy cantando...

Ao entrar na sala e ouvir aquelas vozes cantando juntas em harmonia, arrepiou-se toda. Tão perturbada, que teve receio que todos notassem. Não pode conter um sorriso, sentindo de certa maneira que estava entrando em casa, apesar de nunca ter estado ali. Recebeu uma partitura que não era capaz de decifrar. Mas sabia que ali estavam escritos os sons que ela ouvia. Por isso, aquele estranho gráfico em suas mãos era belo.

Elena não cantara muito. Tivera uma infância difícil, com pouco lazer e pouco brinquedo. Trabalhou desde pequena e cantar sempre dava a aparência de distração, falta de empenho no trabalho, o que era fortemente inibido por repreensões.
Mas, amava música, desde sempre. Sua avó cantava para ela quando era pequena e murmurava enquanto costurava. Nas festas, Elena era atraída pela banda no coreto, e ficava ali vidrada, ouvindo admirada. Não entendia como outros podiam passar pela banda, sem nem olhar. Música para ela não era plano de fundo, era o principal. E sonhava, olhando para os instrumentos, que um dia aprenderia a tocar um. Aqueles compridos em que se soprava eram os que mais lhe chamavam a atenção. Cantavam como sua avó.
Nas missas, Elena ansiava pelo momento em que a beata com sua voz esganiçada cantava o salmo. Não era a beleza da voz que a encantava. Era o canto em si. E quando ficava sozinha, momentos raros, Elena tentava cantar, bem baixinho. Percebia que a voz era como um instrumento dentro dela mesma. E tentava repetir as melodias que ouvira na missa, ou nas festas. Mas, por cantar raramente, acabava por esquecer as canções. Mas, a melodia que a avó cantava quando pequena ela nunca esquecia. E quando lhe faltavam melodias mais recentes, era o canto antigo que lhe vinha à mente e à voz. Às vezes, apenas murmurava como a velha fazia costurando.
Já crescida, foi para o Rio de Janeiro, trabalhar como passadeira e ficou encantada com o rádio. Ouvia o rádio dos outros e ficava torcendo para que deixassem na estação que tocava música. Mas, os outros sempre preferiam as novelas. Até que pode comprar seu próprio rádio de pilha usado e aprendeu a sintonizar em cada estação no momento dos programas musicais. Dalva de Oliveira, Noel Rosa, Cartola, Silvio Caldas tornaram-se seus ídolos. Descobriu uma estação que tocava concertos clássicos. Que sons eram aqueles? Aquela música era diferente. Tinha uma força maior, que ela não sabia explicar, mas passou a ouvir sempre.
No Rio podia cantarolar, que não incomodava nem as patroas. A música fazia parte da vida do carioca e ela gostava daquela alegria do samba, da batucada. Mas, pela falta de costume, era acanhada para cantar. Decidiu ficar lá para sempre, apesar de trabalhar muito, ganhar pouco e morar mal. Começou a estudar à noite e para ir à escola descansava menos ainda. Mas valia a pena. Aprendeu rápido a ler e escrever, encantada com a comunicação escrita que podia ler nas ruas, nos bondes. Um dia viu no jornal notícia de um concerto na Quinta da Boa Vista. Naquele dia não foi passar roupa de ninguém, se aprontou desde cedo. Aprendeu o itinerário dos ônibus e foi sozinha, pois seus vizinhos não se interessaram. Chegando lá, acomodou-se na grama e esperou ansiosa. Ao por do sol, ouviu boquiaberta a 9ª sinfonia de Beethoven, impressionada com o tamanho da orquestra. Tantos instrumentos! Tantos sons... Mas o momento máximo foi quando as vozes entraram no movimento final. Vozes humanas se misturando com os sons da orquestra. Um grupo grande de cantores. Aprendeu depois que se chamava coro. Chorou. Não pode se conter. Que maravilhosa experiência. Naquela noite não conseguiu dormir, repassando na memória cada detalhe, cada momento. Lembrava da melodia o tempo todo nos próximos dias. Aquela ficaria na sua memória para sempre, como a da sua avó. Cada vez mais ia se soltando e cantarolava passando roupa.
Terminou o curso primário rapidamente e ingressou no ginasial noturno. Certo dia, um professor foi à sua escola falar sobre a seleção para um orfeão. Ele explicou que era um coro, onde qualquer um, que tivesse aptidão, podia cantar. Ela se inscreveu para a seleção, feliz com a possibilidade de cantar e ao mesmo tempo apreensiva de não ter a tal aptidão. No dia do teste, pediram que cantasse uma série de sons repetidamente, o que ela fez com certa facilidade. Depois teve que repetir de memória uma melodia que foi tocada. E por último, lhe pediram para cantar qualquer canção que soubesse. Mesmo que seu repertório de melodias houvesse crescido bastante nos últimos tempos, o que lhe veio à mente foi a cantiga de sua avó. Respirou fundo, fechou os olhos e com a voz emocionada entoou a canção antiga, que lhe acompanhara toda a vida. A canção brotou de seu interior forte e clara, como se a avó cantasse através dela. Foi a primeira vez que cantou em público para alguém. Ao abrir os olhos, leu nos rostos dos avaliadores que fora bem sucedida. Mas devia esperar alguns dias pelo resultado final, que seria afixado no quadro de avisos da escola. Passou os próximos dias numa enorme ansiedade. Corria para a escola para olhar o quadro e olhava-o várias vezes no mesmo dia, nos intervalos das aulas. Até que finalmente o aviso foi colocado, com seu nome entre os escolhidos. Soprano. O que seria aquilo? Perguntou à sua professora de português, que lhe era mais acessível e ela explicou que era uma classificação vocal para vozes agudas. Recomendou alguns livros sobre canto coral e Elena passou a ir mais à biblioteca para ler sobre música, coro, orfeão.
No dia marcado, Elena se dirigiu para o endereço indicado para o ensaio, que ela freqüentaria assiduamente, durante anos. Tornou-se corista da Associação Coral do Rio de Janeiro. Realizou um sonho: aprendeu a tocar um instrumento. Não era como aqueles da banda de sua infância. Seu instrumento ficava dentro dela. Cantar passou a ser sua realização. Era algo que ela entendeu que nascera para fazer.
Desceu as escadas do auditório lentamente naquele primeiro dia, com a partitura na mão, olhando fixamente para o maestro lá na frente. Ele parecia moldar os sons no ar. Sentou-se perto dos sopranos. A moça ao seu lado sorriu e lhe mostrou na partitura em que parte da música estavam. Elena demorou um pouco a conseguir emitir algum som, emocionada. Logo aprendeu a acompanhar naquele gráfico os sons que deveria cantar. Elena agora canta sempre, nos ensaios, nas apresentações, na rua e passando roupa. Elena é cantora.

agosto de 2011

8 comentários:

  1. Que coisa linda, Malu! Estou emocionada!

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    1. Obrigada, Mirella querida!
      Feliz de ter emocionado você amiga...

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  2. Lindo texto! De riqueza descritivo-narrativa da mágica emoção de se poder cantar e da beleza de fazê-lo em conjunto. Parabéns Malu Mestrinho!!

    França Alice,
    IBBN - Cuiabá-MT

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  3. emocionei-me, sim. e encantei-me com a gentileza amorosa do discurso de quem sabe como dizer ao coração, coisas da vida e do coração! amo tu,malu mestrinho!!!!!!!!!!

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    1. Querídissima Izaira Silvino,
      impossível não saber que foi você!
      Obrigada...
      amo tu também!

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  4. Este belo texto, fez lembrar-me do Maestro Orlando Leite. Eu fora sua aluna de Canto Orfeônico,ainda no ginásio, década de 1950, e depois de muitos anos, final dos anos 60, ele me dirigiu em "Bogas de Sangue", numa canção de ninar. Não sou cantora(fui atriz) mas ele me aconselhou a estudar canto, dada a raridade de minha voz: "algo" em volta de contralto rsrs.. Não segui seu conselho,o Ceará perdeu uma cantora e eu sou uma "senhora arrependida" ...

    Mas, eu cheguei aqui, via "google", procurando mais sobre Alberto Nepomuceno. Caí na postagem sobre ele e vejo Olga Paiva, em depoimento, num vídeo.Ela pediu a você colaboração para divulgar o nosso ilustre Maestro.

    Quero pedir, também um favor. Fazer com que os biógrafos dele, não cometam o equívoco de dizer que ele é filho de Maria Virgínia de Oliveira Paiva.(Olga Paiva,cometeu um erro mais grave, no vídeo: disse ser ele filho de Maria Isabel de Oliveira Paiva, sua tia bisavó.

    Olga Paiva é, sim, sobrinha bisneta de Maria Isabel (que foi minha bisavó paterna)...porém, esta é mãe de Manoel de Oliveira Paiva. A mãe de Alberto Nepomuceno, é Maria Virgínia de Oliveira, enteada de Maria Isabel e irmã paterna de Manoel de Oliveira Paiva)...reveja o vídeo.

    O avô de Alberto Nepomuceno, João Francisco de Oliveira, casou-se duas vezes: a primeira esposa,foi Emília Rosa de Oliveira ( que teve duas filhas: Maria Virgínia e Joana, nascidas, como os pais, em São Miguel dos Açores); a segunda esposa é que foi Maria Isabel de Paiva Oliveira, nascendo 8 filhos (inclusive Manoel de Oliveira Paiva, Rosa de Oliveira Paiva,minha avó, e os demais).

    Conclusão: Alberto Nepomuceno não é da família PAIVA, mas Oliveira Nepomuceno.
    Há muito "pelejo" para "corrigir" esse equívoco genealógico.
    Em meu blog, Da Cadeirinha de Arruar, estou iniciando uma biografia de Manoel de Oliveira Paiva,escrito por meu pai, José Joaquim de Oliveira Paiva, em 1952, elaborada "à luz das recordações da família".

    Um abraço, Malu Mestrinho,
    da Lúcia.

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    1. Olá Lúcia, fiquei muitos dias sem abrir o sobreCanto, pois meu computador quebrou. Que bom ler o que vc escreveu! Eu fui aluna do Orlando Leite, na Universidade de Brasília. Aprendi muito com ele.
      Grande maestro e educador. Tenho vários amigos cearences e apesar de conhecer pouco, gosto muito da sua terra.
      Sobre sua família e antepassados, posso entrar em contato com a Olga Paiva. Vou olhar também nos livros que tenho na universidade, para checar a grafia do nome da mãe dele, ok?
      No mais, obrigada por ler o sobreCanto.
      Um grande abraço,


      Malú Mestrinho

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